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Os desafios do agroalimentar no pós pandemia


Patrícia Fonseca

Engenheira Agrónoma - ramo de Economia Agrária e Sociologia Rural

Estes dias que temos vivido são tempos que ninguém julgou alguma vez vir a vivenciar. É uma espécie de guerra, sem armas, em que o inimigo é invisível, e por isso difícil de combater.

Se é verdade que à cabeça de todas as preocupações temos de colocar a saúde, procurar acudir a quem está doente e evitar que mais pessoas se contagiem, é indubitável que as consequências para a economia serão dramáticas e todos os sectores serão afectados, uns mais fortemente que outros. O agroalimentar não será excepção.

A agricultura não pára mas não sairá a mesma deste tsunami. Subsectores como as flores e plantas ornamentais, os pequenos frutos, o vinho, os leitões ou o leite e queijo de pequenos ruminantes, por exemplo, por razões diferentes, foram os primeiros a sofrer o impacto. O que pode o sector esperar, então, no curto e no médio prazo?

O sector agrícola (no seu sentido lato) é o sector económico que mais resiliência tem demonstrado ao longo dos anos. Por isso na última crise de 2008, mesmo quando os apoios ao investimento tardaram e o consumo desceu drasticamente, foi com a procura de novos mercados que o agroalimentar se reinventou e conseguiu ser o único sector em crescimento, durante vários anos, acima do resto da economia. De tal forma que muitos, até aí distraídos, descobriram que havia um sector económico pujante e dinâmico que não conheciam e a agricultura passou, disse-se, a “estar na moda”!

Mas, associada a esta enorme resiliência, está também por vezes alguma resistência à mudança, uma certa ineslasticidade. O sector sairá tanto melhor desta crise quanto melhor souber ser disruptivo e se consiga reinventar. Depois de procurar novos mercados e novos produtos, deve agora explorar novas formas de comercialização e novas formas de comunicação.

Um bom exemplo são os circuitos curtos, tão amplamente falados mas tão pouco implementados. Com o confinamento, primeiro autoimposto por muitos e depois determinado pelo Governo, fecharam cantinas, restaurantes e hotéis e muitos produtores perderam os seus clientes habituais. Depressa muitos perceberam, no entanto, que, mesmo confinadas, as pessoas têm de continuar a alimentar-se diariamente e que estávamos a assistir a uma transferência do consumo e foram tantos os exemplos extraordinários que tivemos todos os dias – desde produtores que começaram a vender directamente (em cabazes ou não) ao consumidor final, a organizações que apelaram ao consumo dos produtos dos seus associados, ou restaurantes de bairro que se transformaram em autênticas mercearias. Acredito que alguns dos actuais hábitos se mantenham e que o teletrabalho seja no futuro mais banalizado, pelo que estes canais poderão no futuro ser soluções muito interessantes.

Também o digital e a logística, que ainda muito recentemente eram temidos e anunciados como os responsáveis pelo desaparecimento de milhares de empregos no futuro, mostraram ser grandes aliados, ajudando a difundir a mensagem e chegar ao destino os produtos que antes tinham outros canais de comercialização.

O sector precisa de mostrar à sociedade o que de bom faz e como faz bem feito, conseguindo conciliar quase sempre economia (produção de bens) com ambiente. As pessoas, que com a transformação das sociedades se mudaram cada vez mais para as cidades em busca, e bem, de um melhor nível de vida, foram esquecendo as suas origens rurais e não acompanharam a evolução e modernização dos campos. Nas escolas, ainda hoje a imagem do agricultor que é transmitida às nossas crianças e jovens é a de um sector extractivo, de algum modo retrógrado e sem quaisquer preocupações ambientais. Faltou mais uma vez a comunicação, que outros sectores da sociedade tão bem conseguiram (veja-se como o activismo ambientalista e animalista é tão facilmente propalado, sobretudo nas camadas mais jovens).

O agroalimentar sofreu uma evolução extraordinária nas últimas décadas. Profissionalizou-se, modernizou-se, incorporou muita ciência e tecnologia sem descurar as preocupações ambientais e de segurança alimentar. Conseguiu aumentar fortemente a sua produtividade (produzimos hoje muito mais e com melhor qualidade, com a mesma terra, com cada vez menos factores de produção e com muito menor impacto ambiental). Mas, ocupado em todos estes objectivos, o sector esqueceu-se de comunicar, tem falado sobretudo para dentro e não para fora.

A possibilidade de haver falta de alimentos, por mais ínfima que seja, trouxe a agricultura novamente para o centro das atenções de muitos portugueses – todos assistimos, com maior ou menor intensidade, à falta de alguns produtos alimentares no início do período de confinamento, não por dificuldade de abastecimento da produção, mas por açambarcamento por parte de alguns. Por isso, quando assistimos à dependência externa da Europa no que respeita, por exemplo, a equipamentos médicos e material de protecção, devemos pensar também na nossa independência (soberania) alimentar, a nível europeu, claro, pois só assim fará sentido.

Mas o debate em torno do orçamento comunitário para o próximo período de programação, quando for retomado, será intenso. As pressões para levantar a economia serão enormes, pelo que muito dificilmente a PAC terá o reforço orçamental desejado. Quem sabe se não será esta a oportunidade para a Europa olhar de uma forma mais racional e menos ideológica para o contributo que a ciência pode dar para o objectivo de se alcançar a soberania alimentar e finalmente tecnologias como a edição genética, por exemplo, possam ser aceites? Também por isto, a comunicação e o marketing serão mais importantes que nunca.

Sabemos que alguns subsectores irão sofrer muito mais com o impacto da brutal crise económica que se avizinha e demorarão mais tempo a recuperar (todos os produtos de maior valor acrescentado, que tenderão a ser menos consumidos num cenário de crise económica) mas diria que, regra geral, a par da enorme necessidade, que continuamos a ter e não pode ser descurada, de investimento no agroalimentar (que pode começar por desbloquear rapidamente as verbas que já existem), o sector deve perceber que tem de se virar para fora, apostar forte numa estratégia de comunicação e marketing, num verdadeiro lobby agrícola, e explorar o potencial deixado por todas as transformações do dia-a-dia deste nosso novo normal.

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